Sociedade x Indivíduo

Queria ser conciso para expressar o quanto esta frase me vem como um risco de giz ou unhas rasgando a superfície de um quadro negro. Quero dizer o quanto uma simples palavra escalpela-me, desintegra a minha integridade e me faz um estranho que já nasceu derrotado no mundo dos comuns! 

Consultando brevemente o Aurélio, vago na lisura para as certezas do que digo, que desvio da norma, me diferencio, causo inquietação, sou depravação, defeito.

Mas por quê? O que é ser normal? O que é normal?

1. conforme a norma, a regra; regular;
2. que é usual, comum; natural;
3. sem defeitos, problemas físicos ou mentais;
4. cujo comportamento é considerado aceitável e comum (diz-se de pessoa).

Entendi! 

Seguindo os conceitos da normalidade, com rasgos na alma por estar alheio a sociedade regrada, comum e aceitável, vaguei por avenidas estreitas e nebulosas da autodepreciação e entendimento! 

Da religião me fiz mito e demônio;
Da biologia me guiei por regras naturais;
Da psicologia, fiz cura. 

A CURA GAY
— O que te traz aqui, Rogério? — Questionou a terapeuta.

— Quero ser normal. Quero tratar a minha anormalidade. — Eu disse!

— Mas o que você tem de anormal? 

Assim, iniciei a minha dialética que, até então, só estava vagante na mente e aflita no coração:

“Dr.ᵃ, sou um homem gay, não me aceito, porque também não sou aceito pela sociedade. A religião diz que tenho um demônio no corpo. Estou tentando ignorar isso e partir para algo mais sóbrio, natural, como a biologia do que vejo no espelho e os fins de perpetuação genética da minha espécie. Seguindo essa lógica, preciso de alguém do sexo oposto para poder assumir as finalidades do que meu corpo foi feito e, por consequência disso, manter a nossa existência na terra.”

Com uma leve erguida de sobrancelhas e ares de impressão, ela intercorreu: — Rogério, você é um rapaz inteligente. Tô feliz e impressionada. Parabéns!

Me limitei a um sorriso sem jeito e em um mínimo instante, ela seguiu:

— Você é muito coerente em tudo que disse, de fato e em tese, é isso mesmo. Mas, no seu discurso todo, você mencionou a palavra NATURAL. Isso é natural para você? O que você sente, o que te trouxe aqui, o que você veio me dizendo que é, como sente isso dentro de você? 

Essas perguntas vieram-me como afronta no nimbo que estava a minha cabeça. Segui o diálogo:

— Olha, é uma coisa que não desejo sentir, mas sinto. Não quero causar desconforto em ninguém, agredir ninguém com isso, eu só sinto. Está além de mim e do meu controle. Vejo como outro homem repara com olhares de desejo uma mulher. Comigo acontece o mesmo, só que com homens. Não estou escolhendo sentir isso, não estou decidindo sentir isso, é algo que só vem! 

Finalizei neste ponto e, quase que com uma precisão cirúrgica, ela interveio: — Então, Rogério, é normal… é NATURAL!

O susto nesta frase de impacto só me fez esboçar um “Mas”, com uma reticência que durou quase o restante da sessão. Eu só sabia chorar! 

Parece que o Pico do Monte Everest havia saído das minhas costas, que uma tempestade havia se dissipado aqui dentro. Nunca me vi como normal, nunca me senti normal, mas somente a partir daqui, eu abri as comportas de uma hidrelétrica que me dariam as energias para enfrentar um mundo de gente estranha que me pusera ali, naquele lugar de demônio, escória e anormalidade!

Ela seguiu: — Rogério, há uma infinidade de espécies com comportamento Homossexual, a gente só é uma delas. É a forma mais natural de expressão da sexualidade!

Bom, o meu único desejo naquele momento, era dar um abraço naquela mulher e acabar de chorar tudo que estava aprisionado aqui dentro. Eu não sairia daquela sessão com um ponto final se eu não tivesse pedido um abraço naquele dia. Pedi, recebi e nunca mais voltei!

COMPLICADA E PERFEITINHA
Mas não parei por aqui, claro. Foram 3 meses de terapia para chegar até este ponto. E mesmo com a autoaceitação esclarecida, eu não queria ser o exemplo de tudo que a sociedade enquadrava a homossexualidade: promiscuidade, HIV/Aids, imoralidade, escárnio e esteriótipos. Tentei carregar o fardo de querer ser o perfeito, o exemplo, íntegro, amigável, amável, respeitoso, bondoso… E mano, que caralho difícil. Neguei a mim mesmo para ser bem quisto! Contudo, isto foi pauta para outras terapias, em outro momento futuro da vida!

Dali, comecei a engolir tudo que era de respeito ao espectro LGBTQIA+: filmes, livros e lugares. Questionei padrões na sociedade, visei conhecer o que julgam, a acolher o que excluem, a deliberar sobre o que é natural no mundo e me debrucei nas questões sobre o que ainda é eco interno e reflexos do que eu ainda ouço: 

"Isso não é normal. Isso não é de Deus!"

Tá bom, okay. Vamos por partes. 
Vamos falar sobre o que é normal, em sentido biológico... NATURAL! 

CONTRA FATOS HÁ ARGUMENTOS?
Vejamos:

- Mais de 1500 espécies de animais foram observadas com comportamento homossexual;

- Existem mais de 8,7 milhões de espécies catalogadas no mundo, dos cinco Reinos (animal, vegetal, protista, fungi e monera). Neste contexto, fazendo uma simples regra de três, temos uma porcentagem de 0,017%, observadas até o momento, com o comportamento homossexual. Pergunto:

— Normal ou anormalidade? 

Há como julgar um comportamento natural de uma espécie como anormal somente pelo fato de ser em menor escala? 

Como qualificar anormal o que vem da natureza?

Façamos uma breve analogia aqui:

Existem mais de 60mil espécies de aracnídeos, destas, cerca de 34, são aranhas Viúvas-negra. Esta espécie tem como característica comum o canibalismo sexual, ou seja, a fêmea devora o macho logo após a cópula. Tendo por base esses dados, cerca de 0,05%, dentre todas as espécies de aracnídeos, apresentam este comportamento. Pergunto:

— Comportamento comum, características da espécie ou anormalidade?

Por fim, se mesmo com esses poucos dados a sua concepção sobre os casos seja dada como incomum ou anormalidade, podemos concluir que o seu conceito de normalidade tem uma significação de sentido hegemônico e não semântico. A sua definição do que é normal, é o que se sobrepõe, é o que está em maior escala e não ao que é característica. 
Mas, quero parafrasear que todo o conjunto de características de uma espécie é o que as tornam comuns, fator também que determina a diferença entre uma e outra. Portanto, não as tornam anormais, mas sim com comportamentos e qualidades distintas.

FALANDO DE HUMANOS
Vamos lá:

- Pouco mais de 7%, da população dos EUA, se autodeclara da comunidade LGBTQIA+, assim como pouco mais de 8%, dos brasileiros também. 
- Somente metade da população LGBTQIA+, se declara publicamente no país, portanto, a estimativa real é maior do que os dados oficiais. Pergunto:

São dados característicos da população humana ou apenas um conglomerado de anormais? 

A ESCALA DE KINSEY
 

“O abismo entre o que achamos que as pessoas fazem e o que elas realmente fazem é imenso”.

Esta frase dita por Alfred Kinsey, biólogo e sexólogo, revela o quanto de puritanismo, hipocrisia e preconceitos estão enraizadas na sociedade. Estamos presos entre ditar o que é certo, com o que realmente acontece e sobre o que realmente é.

Kinsey, afirma que a sexualidade humana não está dividida em dois polos exclusivos (heterossexualidade e homossexualidade) mas, que há uma variabilidade que não torna a heterossexualidade uma orientação hegemônica, na prática. Na escala de Kinsey, temos uma variação que vai de 0 a 6, sendo 0, pessoas exclusivamente heterossexuais e 6, pessoas exclusivamente homossexuais. Portanto, o grosso social, existindo, está na variabilidade que vai de 1 a 5. Nesta faixa, subtendem-se bissexuais, pansexuais, homens que fazem sexo com Homens, mas não se identificam como gays. 

Com tudo isso explícito, o que torna hoje, somente a orientação heterossexual socialmente aceita?

O que faz todas as outras formas de expressões sexuais incorretas?

SOCIEDADE X INDIVIDUO 
Sabemos então que a prática homossexual é inerente a espécie humana, portanto, sempre existiu. O que temos como trabalho, é como o homem, como um ser social, trata esse comportamento ao passar dos anos e em diferentes civilizações. 

Para muitas civilizações antigas, a sexualidade ia além das funções reprodutivas, eram comportamentos que asseguravam a honra, a masculinidade, a consolidação, a ascensão intelectual, a dignidade e a genuinidade. Entretanto, o grau de condenação para tal, também era distinto e se perpetua até os dias atuais, sendo punível em 73 países e, com pena de morte em 13. O reflexo deste quadro se dá por questões político-religiosas. 

Voltando as antigas civilizações, um indivíduo não tinha valor de responsabilidade única e subjetiva, era parte integrante da sociedade, portanto, seus comportamentos deveriam refletir as características que definiam aquela população. Pergunto:

Algo mudou? 

Teoricamente NÃO. O que temos de novidade, é a distinção de indivíduos segundo as suas demandas físicas e subjetivas. A prática homossexual passa a não ser apenas um comportamento aceitável, ou não, por determinadas sociedades, mas sim, uma dinâmica interna, dentre outras, que definem um indivíduo, uma pessoa, um ser humano integrante da sociedade.

Mas, até que ponto o indivíduo serve a sociedade e a sociedade serve o indivíduo? 

Émile Durkheim, um dos precursores da Sociologia e Psicologia Social, traz a ideia de que sentimentos privados se tornam sociais quando ultrapassam a barreira do indivíduo e se associam, dando origem à representação de uma sociedade.

Deste modo, um influencia o outro no decorrer do tempo. Um indivíduo é primordialmente guiado pela sociedade, mas a sociedade também se transforma com as demandas individuais. Foi e tem sido assim ao passar dos anos com as mulheres, com a comunidade negra e LGBTQIA+.

Portanto, finalizando toda essa minha dialética, se um conjunto de indivíduos é escravizado, segregado, invisibilizado, usado, discriminado, mutilado e assassinado, por características genuinamente humanas, que não interferem com os mesmos teores de ódio e morte o resto da sociedade dita correta… Pergunto:

O que é anormal aqui? 
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P.S.: Este blog é um mero expresso de vivências e informações que me trouxeram até este ponto de conhecimento sobre o assunto. Portanto, não quer dizer ser autoridade no discurso ou tão pouco ter esta pretensão.

Referências:

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